Imagine um jornalismo sem venerar os grandes nomes, sem pautar temas que já aparecem na mídia que já não nos comovem por mais trágicos que pareçam ser. Imagine, então, um livro que mostre a realidade que, de tão dura e dramática, pareça literatura. É isso o que se pode encontrar na obra "A vida que ninguém vê", da jornalista Eliane Brum, vencedora do Prêmio Jabuti 2007 na categoria "Reportagem"
Com textos que parecem transitar entre a crônica e a reportagem, Eliane Brum escolhe personagens e neles busca o universal e o singular de grandes histórias que muito mais informam sobre a vida que as informações factuais que vemos todos os dias nos jornais. Tudo isso a autora faz guiada pela máxima em suas próprias palavras: "não existem vidas comuns, só olhares domesticados".
Compatilho com vocês trechos do texto "Enterro de Pobre", um dos mais densos e expressivos do livro:
"Não há nada mais triste do que enterro de pobre. Porque o pobre começa a ser enterrado em vida. Quem diz é Antonio, um homem esculpido pelo barro de uma humildade mais antiga do que ele. Um homem que tem vergonha até de falar e, quando fala, teme falar alto demais. E quando levanta os olhos, tem medo de ofender o rosto do patrão apenas pela ousadia de erguê-los. Quem diz é Antonio Antunes. Ele acabara de sepultar o caixão do filho por um momento, mas a funcionária que foi buscar a criança na geladeira não deixou. Antonio tinha comprado uma roupinha de sete reais no centro de Porto Alegre para que o filho não fosse sepultado nu como um rebento de bicho. Mas não pôde vesti-lo. Restou a Antonio o caixãozinho branco que ninou nos braços até a cova número 2026 do Campo Santo do Cemitério da Santa Casa.(...)
Nada se encerrou para Antonio porque ele sabe que em breve estará de volta. E será tudo como foi. Como sempre foi, na morte como na vida. Deixa para trás o filho sem nome, sepultado na cova rasa, sem padre e sem flor. Porque a cova de pobre tem menos de sete palmos, que é para facilitar o despejo do corpo quando vencer os três anos de prazo. Então é preciso dar lugar a outro filho pequeno de pobre por mais três anos. E assim sucessivamente há 500 anos.
Debaixo de cada uma das mais de duas mil cruzes semeandas na terra fofa do Campo Santo há uma sina como a de Antonio. Para entender o resto da história que ainda virá é preciso conhecer o que é a morte do pobre. É necessário compreender que a maior diferença entre a morte do pobre e a do rico não é a solidão de um e a multidão do outro, a ausência de flores de um e o fausto do outro, a madeira ordinária do caixão de um e o cedro do outro. Não é nem pela ligeireza de um e a lerdeza do outro.
A diferença maior é que o enterro de pobre é triste menos pela morte e mais pela vida."
[26 de junho de 1999]
Eu ainda tô esperando tu me emprestar o livro!
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